Um pacote de arroz

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Há alguns dias, fui ao mercado. Cheguei na porta e tinha um casal bem magro e em condições de higiene bastante precárias, sentado num pedaço de tecido velho que também não estava limpo. Eles pediam alimento às pessoas que entravam. A maioria ignorava. O que – pra deixar claro – não é uma crítica. Tenho certeza que todos nós ou a maioria de nós já passou reto por uma cena como essa.

A cena, infelizmente, não é rara. Todos os dias, em qualquer mercado, é possível encontrar uma situação como essa. Nos últimos tempos, ainda mais comum se formos pensar sobre os efeitos econômicos da pandemia no Brasil e no mundo.

Naquele dia, eu parei. O rapaz me olhou bem no olho e disse: “Moça, você pode comprar um pacote de arroz? A gente queria fazer no final de semana.” Eu fiz sinal com a cabeça dizendo que sim e continuei andando.

Entrei no mercado, comprei as coisas que eu precisava, peguei o pacote de arroz do casal e mais uma bolacha doce para a sobremesa deles. Sempre penso que pedir comida é diferente de pedir dinheiro.

Passei no caixa, paguei as compras e fui até o casal entregar a sacola que eu havia separado com os itens deles. Me aproximei pra entregar. Quando cheguei perto deles, saiu uma cachorrinha debaixo do cobertor. Linda, pretinha e simpática. Brincou comigo, perguntei o nome, eles me apresentaram: “Essa é a Neguinha, moça. É nossa.”. Eu disse a eles que era linda a Neguinha, brinquei um pouco com ela, entreguei a sacola e desejei um bom dia. Eles agradeceram e eu segui caminhando. O rapaz, então, chamou: “Moça!?”. Eu me virei pra atendê-lo. Ele, pela segunda vez, me olhou bem no olho e disse: “Obrigada pela sua atenção.”. A gratidão não estava só nas palavras, estava nos olhos dele. Eu sorri e fui embora.

Morador de rua feliz com o seu animal de estimação, fonte: The Greenest Post

Ele não fazia a menor ideia, mas a gratidão na verdade era minha. Nessa ocasião, fazia mais ou menos 10 dias do falecimento do meu pai. São dias difíceis pra quem vive um luto. Sair da cama todos os dias é uma dura tarefa no começo. Aqueles 60 segundos presenciando a alegria da Neguinha e o orgulho dele ao me apresentar a ela tinha mudado o astral do meu dia às 7h30 da manhã. Isso não tem pacote de arroz que pague.

Nesse momento, eu percebi que ele – obviamente – ficou agradecido pelo pacote de arroz. Mas isso qualquer outra pessoa poderia ter feito ou ele mesmo poderia juntar alguns trocados durante a semana pra comprar. Quero dizer, ele teria outras alternativas sem a minha ajuda. A verdade é que grato mesmo ele ficou pelo minuto de atenção que eu dei pra ele, pra mulher e pra Neguinha.

Essa reflexão tomou vários momentos do meu dia. Eu estou romantizando aqui um momento que foi importante pra mim e também pra eles. Mas a verdade é que estamos falando de invisibilidade social. Como ser humano, educadora e estudante de Psicologia, já me peguei muitas vezes pensando sobre esse tema. E algumas perguntas realmente me deixam sem resposta.

Qual foi o momento em que a gente perdeu a sensibilidade a ponto de normalizar o não-olhar pro próximo? A partir de qual dia, de qual horário, passou a ser “ok” ter alguém com fome na rua? O que aconteceu com a gente pra cenas como essa não chamarem mais a nossa atenção?

Skid Row – L.A.

Pode parecer até demagogia da minha parte. Mas como já disse, não estou me colocando à parte da massa. Pelo contrário, estou compartilhando os questionamentos que faço a mim mesma. Tudo isso, pra mim, resulta numa outra pergunta: Quando foi que nós perdemos o senso de humanidade?

A resposta pra essa questão não existe.

Por exemplo, na minha rua “mora” um rapaz. Todos os dias eu passo por ele. Ele é jovem, deve ter mais ou menos a minha idade, pouco menos de 30 anos. Perambula pela rua todos os dias. Sujo, mentalmente adoecido e sozinho. Repito: eu passo por ele todos os dias. E eu só passo. É automático. Todos os dias eu saio de casa, trabalho, cumpro minha rotina, me alimento, volto pra casa e continuo passando por ele. Normal e costumeiro. Eu me acostumei.
Assim como eu, você também já se acostumou com algo do tipo.

O erro não está no rapaz, nem em mim e nem em você. Individualmente, somos todos capazes de rever conceitos. Mas por quê, nós, enquanto massa, sociedade, humanidade, estamos deixando de humanizar?

Proponho, então, a reflexão e convido você, leitor, a compartilhar aqui nos comentários os seus pensamentos sobre esse tema.

Com carinho e gratidão a você que chegou até o final desse texto comigo.

Carol Lanza.

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5 respostas

  1. Que texto realista!! Cada vez mais estamos perdendo o sentido de humanidade, infelizmente! Estamos nos acostumando a esta vida, sem piedade e sem expectativas, tudo pelo simples fato do egoísmo, egocentrismo.

  2. Que texto lindo. A reflexão maior é realmente saber como e quando isso tudo tornou-se “normal”? Quando começamos a normalizar essas situações. Por mais pessoas que enxerguem com o coração, com a razão e com o sentimento de empatia como vc enxergou eles. Sua sensibilidade continua me emocionando Carol!

  3. Emocionada com o texto e a verdade nele, tenho pensado muito nisso e presenciado muito cenas assim, sempre que posso ajudo com comida e até mesmo um trocado. Como vc escreveu me dá uma sensação de bem estar indescritível.

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